sexta-feira, 2 de março de 2018

(28 de janeiro, dia de Pele, deusa havaiana do fogo)


Quando chover,
ouça a chuva
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(Desde que nasce, o corpo é uma fonte de água. Ninguém mais sabe produzir água além da sabedoria da natureza; então se você produz e deixa cair dos olhos, você é tão cascata quanto as grandes rochas que eternizam os rios em queda. Ser cachoeira é estar em estado de entrega e nunca parar de cantrar o mantra da constância milagrosa de Gaia. Ser cachoeira é saber que enquanto estiver viva, terá a oportunidade bruta de chorar e de rugir, pelas correntezas que passam pelas frestas criadas quando damos passos)
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Quem me habitaria (esse corpo que só pertence a lama e dela renasce - matéria prima - a cada fagulha de madeira que produz fogo) se não o acendesse (ele o FOGO), ao pisar mais uma noite, com os pés maduros, no meu ninho de galhos macios?
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Quem habitaria esse corpo, se ao sair do concreto (com as duas pernas seguidas do TRONCO inteiro - feito da temperatura do vento) não permitisse a humildade silenciosa e crua da brita de pedras canalizar acupunturas da planta dos meus pés-raízes para a minha inteireza que se move em outra frequência?
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Quem habitaria minha pele - ou melhor, minha compostagem de experiência, xorume e caules - se não essa alma antiga, anterior as palavras? Minha compostagem de experiência, xorume e brotos reveste essa alma assim como a terra fecunda sussurra a eterna fertilidade
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Essa é a pele agora em flor que transforma o ritmo das células nervosas das minhas mãos (e o faz a partir do ar-fôlego da rotina viva dos meus pulmões). A mão toca os seres e os seres são todos feitos da terra, e tudo que toca afeto e terra oculta os significados, porque: SENSAÇÃO
Anterior a mente
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Quando esse corpo que é seu possui no seu centro um tambor, esse seu corpo se dilui na frequência-ar das batidas e TODOS OS SERES TERRA SE CONECTAM CONTIGO PORQUE RESPIRAM ESSE MESMO AR QUE CONTÉM ONDAS SONORAS DO SEU CORAÇÃO + SUAS PRÓPRIAS BATIDAS E RESPIRAÇÕES.Todxs tocamos tambores para a vida e a permanência, e se conectar com x outrx é improvisar novos ritmos num som parido do conjunto. A vida torna-se sagrada - alguém ousou o encontro, e assim brincou com a lógica do deus tempo. A conexão real entre os seres desafia a surdez da inércia. E ela, somente, me mantém atada nessa consciência que me presenteia com a turbulência graciosa de estar entre a minha alcateia.
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Assim, pulmões-ar fornecem força para coração-tambor-terra que fornecem força para o ar-pulmão criar ondas sonoras que fornecem força para o som que é por fim engolido através da inspiração de casa ser para dentro de seus próprios corpos. Isso quer dizer que pulmões, choro, coração, ar, música, terra, comer elementos ao inspirar, rir e tocar pela fecundidade do calor do corpo pertencem (tudo isso) a um mesmo princípio, que é o que conduz a liberdade fria das águas.
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Perder as fronteiras de si não significa nada - apenas acontece
toda existência me abraça e me transcende ao caos, ao qual me curvo em gratidão por expandir tantos sentidos singulares. Há um penhasco - voar nele é possível, e ele é tão alto quanto seu medo pode sentir; mas o medo te lembra da raridade da vida, sua efemeridade - e por lembrar da efemeridade, lembra da tua vontade de permanecer fluído na experiência antiga e sublime de estar vivx nessa sua história. Nós movemos as ações e com a fricção das nossas (UNIVERSO) ações a faísca do Grande Mistério renasce
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O amor poderia se chamar abertura. Quando você inspira (e é isso que te fornece força para bater o tambor), você está abrindo suas costelas para a vida entrar. Quando você gargalha, você está abrindo as suas musculaturas e permitindo que hormônios de cura cheguem. Quando você abre uma porta que nunca abriu antes, você está abrindo a satistafação do âmago da sua curiosidade. Quando você abre, tudo é novidade, outra coisa, o desconhecido que passa a ser conhecido, o novo que passa a tomar a carne da sua história. Por isso, amor poderia se chamar abertura. Não há motivos para desespero - a realidade respira fundo
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Quem habitaria meu corpo se não enxergasse a matéria em moléculas de poema? Eu ainda posso bordar naquilo que presencio na minha rotina, e essa é a razão de gratidão mais profunda. Quando faço esse bordado, finco o cordão colorido da arte no tecido da derme e a dor de criar cores confirma a validade e autenticidade do meu olhar sobre o que vejo no mundo (com todos os meus olhos)
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Então, só pode ser eu que me habito, pois desconheço a ausência do fogo, da terra, do ar, da água, da música, da abertura, da lágrima, das cascatas e da magia
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Posso me reconectar com a minha totalidade.
Quando chover, ouça a chuva.

(Todos os animais estão ouvindo a chuva. Se você ouví-la também, estaremos conectados nas batidas desse rito primordial alquímico de receber o molhado para gerar lama, caules, brotos e flor da pele)


Eu sinto o olhar do porteiro do meu condomínio a cada "bom dia"
Ele me olha como se eu fosse uma intrusa nessa piscina de plástico e sabão artificial da cristandade em que todos escorregam e se benzem ao cair sobre os outros corpos nus
Ele certamente vê os homens que entram e saem da nossa casa de acordo com o nosso querer
E se benze com seu olhar plástico e intoxicado de sabão artificial
Mal sabe ele mas seu corpo também está nu
Hoje
Eu
Minha, mulher não mais docilizada
Devorei uma pizza inteira porcamente
Cortei os pedaços com a mão e lambi os dedos no final
Enquanto eu comia verdadeiramente a minha pizza
Eu meditava fooooooooooooda-se
E enviava ao porteiro
E benzia a cristandade com esse mantra
E corroí um pouco mais a falsa moral dentro de mim
Meu sagrado feminino também é profanação da feminilidade
Eu sou um bicho
Sei uivar
E sei guinchar


Dez da noite

Meus dedos manuseiam facas de serra para fatiar o pão (com as mesmas mãos que apontam direções às pessoas digitam teclas numa tela que evoca vozes coçam minhas picadas de selva varrem a poeira do tempo na minha casa fazem sons quando ensaboam o corpo batucam as janelas dos automóveis que me deslocam escrevem cartas de fim tocam as texturas)

Todas as mãos ao meu redor fazem o mesmo que as minhas

E me dou conta
Do quão
Corpos-cotidianos
Somos

Alguém conta uma história mas é sobre a novela
Alguém se eriça mas é porque a louça precisa de novo ser lavada
Alguem me toca e pede a manteiga
(O toque de pedir a manteiga tem calor o suficiente para tamborilar dança e carregar música em si, mas se esqueceu)

Minhas palmas seguram facas todo fim de tarde
E eu gostaria mesmo de usá-las para criar uma fenda nessa normalidade insuportável
(As palavras são SEMPRE as mesmas
Falar se torna um ato passivo agressivo
Quantas vezes usamos nossa boca para rir de nervoso?)
Há quanto tempo eu não libero a víscera da minha dança?

A rotina
Precisa estourar
Ir além
E deixar vestígio em brasa na manhã seguinte
Ritos coletivos em oferenda ao movimento absurdo
Um grito solto como bom dia e um olhar de gruta como boa noite
Fazer sexo com as plantas do quintal
Cantar desafinado com a voz que vem da planta dos pés
Quebrar um vidro e deixar o vento entrar
Comer prana com a mão e pintar a pele de azul
Temperar os pés com uma mistura de luz da crescente e gel de babosa

O caos

É urgente


Fecho a porta do quarto e pego o lápis. Meus dedos que escrevem têm resquícios de pimenta do reino

Estou com o vapor da panela de molho branco cobrindo meu colo e rosto. Estou com muitas ervas se espalhando pelo meu corpo
(sinto agora a artemísia soprando o curso das novas iniciais do meu sangue que logo devem chegar
a camomila soltar meus braços e fazer magia com as articulações da minha mão direita de costurar poemas
a fumaça pesar o corpo
acordar os sentidos
a língua)

Hoje a noite eu dancei queimando os nós mentais na alquimia da boca do fogão, e dancei de pitadas generosas

Deixei você ir embora com o vapor dispersando pela fresta da janela da cozinha

E comi minha dança com tempero de noz moscada

psilo



Meu corpo de mamífera
Branco, enorme e redondo
Não se entende mais só
Há também as liquefeitas e encaracoladas entradas na matéria do ar

Não lembro quando mas meu corpo não só mamífero entra
Ou se torna
Esse portal de espirais neon e córregos

Sou a noite
Inseta
Minhas asas são imensas e têm forma de canoa
Elas me carregam tranquilamente
Eu, sibilante, só sei ser borboleta
Uma mariposa gigante nas águas cristal banhadas pela Lua
Suas asas barco e seus deleites soprosos de frutas

Minhas patas delgadas e pegajosas devoram os néctares, as folhas e as castanhas
Sinto a crueza e a maciez doce da pele das frutas e seus sumos como a crueza das vaginas úmidas
E assim
Vôo

Me observo: sou azul, pintada, cheia de detalhes
Meus cabelos já não me pertencem
Esfarelo minha pele e também tudo o que toco com as patas
Sou a sutileza da borboleta que pousa, depois se lança, e se descobre
Divina
Meu equilíbrio se dá pela respiração profundíssima das minhas asas

Meus barulhos rápidos e líquidos se comunicam diretamente com a Floresta em uma língua feminina soprosa redonda poética anoitecida levíssima cambaleante e completamente
Natureza

Sinto a Lua e eu-inseta-deusa-devoradora a convido
Num convite que se faz às amizades mais íntimas e antigas
Para realizar sua magia nos órgãos dos seres todos
Danço com ela nas cores lentas e vivas da Floresta, guiada pela correnteza suave do rio

Me banho porque ainda ouço a água
Na janela do meu quarto Ela irradia seu poder como mandala
Ouço meus irmãos grilos e o frio do vento
Minha carcaça se rompe
Exoesqueleto
Retorno ao meu corpo de mamífera
Mas sou outra


só palavras de magia

anunciadas pelo silêncio e pela voz dos trovões que precedem as chuvas do verão
aquecidas no magma que ferve no estômago dos vulcões
enraizadas no solo fecundo da árvore mais antiga da Terra
e proclamadas na eternidade das fendas espaciais evocadas pelas cigarras

poderiam descrever esse encontro meu e seu
que só tu e eu podemos traduzir
nas nossas pupilas que se tocam telepáticas

e confundem as convenções do tempo


eu
que já me sabia inteira lar em mim mesma
reconstruo as paredes da minha casa com a extensão da sua pele-capa (minha canção iluminada de sol)
e permito que a magia profunda de gruta e céu galáctico pinte nosso cotidiano
e desloque as minhas certezas

nós

costurados nessa malha caleidoscópica vital

a anti-máscara a dimensão além-mente a crueza-princípio dos diamantes a dúvida cavocando concretos sociais enrijecidos de medo e estagnação a respiração das montanhas a coragem de se assumir integridade a fusão alquímica dos encontros e do breu estrelado desconhecido a força de todos os bichos e a arte de todas as bruxas da terra a remada do barco que cruza a correnteza o som constante dos orgasmos das ondas e seus segundos de vazio a sensação inicial do sonho vivo a consciência amor ou algum outro desígnio não catalogado em palavra que possa moldar no espaço esse reencontro único diário fluído de rio

família
o conforto dos amigos mais compridos
o estado de gargalhada
astral e firmeza
magos e feras
ancestralidade

traçar trilhas suaves pelas florestas virgens
brotar verde no concreto
ancorar a transformação dos limites
e ainda assim
estar
aqui, e só sensação
sensação sensação sensação sensação sensação sensação sensação

todos os olhos despertos